domingo, 15 de março de 2009

Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como ''data natalícia'' e ''saudade''.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esquias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-he emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Como casualmente, informou-me que possuía ''As Reinações de Narizinho'', de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadaca devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tornava toda e eu começava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do ''dia seguinte'' com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo idefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo com humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicaçõs a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa me entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em sil~encio: a potência da perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: ''E você fica com o livro por quanto tempo quiser''. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: ''pelo tempo que eu quisesse'' é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assimrecebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não começei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro. achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.





Clarice Lispector.

sábado, 14 de março de 2009

Carta de amor.

Que irá ser de mim e que queres que eu faça? Como estou longe de quanto havia previsto! Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses e que as tuas cartas fossem muito longas. Esperava que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te, que uma total confiança na tua fidelidade me daria um certo repouso, que ficaria, em qualquer caso, num estado bastante suportável, sem extremos de dor... Tinha mesmo pensado nalguns vagos projetos de fazer quanto estivesse ao meu alcance para me curar, se pudesse ter certeza de que me tinhas, efetivamente, esquecido. O teu afastamento, alguns ímpetos de devoção, o receio de arruinar por completo o resto da minha saúde com tantas vigílias e inquietações, a pouca probabilidade de teu regresso, a frieza da tua paixão e das tuas últimas despedidas, a tua partida baseada em tão precários pretextos e mil outras razões, boas demais e por demais inúteis, pareciam oferecer-me auxílio bastante seguro, se para tanto ele fosse necessário. Não tendo, em última análise, de combater senão contra mim própria, não podia imaginar toda a minha fraqueza, nem compreender tudo o que agora sofro.
Ai de mim! Como sou de lamentar, eu, que não posso partilhar contigo as minhas dores e que me encontro a sofrer sozinha tamanha desgraça! Mata-me o pensar nisso e morro com o receio de que nunca tenhas sentido bem a fundo todos os nossos prazeres. [...] Eu não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo: encontro-me dilacerada por mil movimentos contrários. Poder-se-á imaginar estado tão deplorável?
Amo-te perdidamente e respeito-te bastante para não ousar talvez desejar que sejas atingido pelos mesmos arrebatamentos. Matar-me-ia, ou morreria de dor sem me matar, se soubesse que não tinhas descanso, que na tua vida mais não há que perturbação e agitação de toda a sorte, que choras sem cessar e que tudo te desgosta. Se já não posso remediar os meus males, como poderia suportar a dor que me dariam os teus e que me seriam mil vezes mais dolorosos. [...]
Adeus, mais uma vez! Escrevo-te estas cartas longas demais: não tenho suficiente respeito por ti, e disso te peço perdão. E ouso esperar que usarás de alguma indulgência para com uma pobre insensata que não o era, como muito bem sabes, antes de te amar. Adeus! Parece-me que falo demais no estado deplorável que me encontro. No entanto, do fundo do coração te agradeço o desespero que me causas, e detesto a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer.


Sóror Mariana Alcoforado.

Brain turns off!

Eu nunca tive um blog, mas eu queria um lugar onde eu tivesse a oportunidade de escrever o que têm se passado na ''intimidade'' da minha cabeça, e não achei nenhum outro lugar onde isso fosse mais possível. Aliás, um diário talvez servisse, e geralmente é justamente esse o papel que ele exerce, mas eu não tenho mais vontade de escrever em diários. Eu nunca lembro de escrever todos os dias, e sinto-me como em dívida quando falto com essa... obrigação.

Todo mundo tem que tomar decisões complicadas e difíceis na vida. Eu não sou de completa indiferença, é claro, mas sabe quando tudo o que você quer é ter que tomar decisões sem ter que pensar nas consequências dos seus atos? Sem ter que arcar com os efeitos que tais decisões podem trazer-te? É mais ou menos assim que ando sentindo. Me vejo tão confusa que meus pensamentos simplesmente não querer obter coerência, mesmo que eu dê o melhor de mim para isso. E depois, fico exausta. Fico exausta por que sempre vejo os meus esforços para pensar corretamente indo por água a baixo, de alguma forma eu nunca fico contente com a decisão que eu consigo tomar. Quanto mais eu luto, mais eu perco. Quanto mais vencedora eu quero ser, mais perdedora pareço. E geralmente isso me tira do sério, ainda mais eu, que costumo ser paciente e delicada como uma flor RISOS

Mas o quê me deixa mais irriquieta é que no fundo eu prefiro simplesmente não tomar decisão nenhuma, porque assim eu não vou trazer consequências pra mim mesma... Não é que eu perca alguma coisa... Eu simplesmente deixo de ganhar. Eu vou deixar o tempo encarregar-se de fazer o trabalho dele, afinal. E vou fazer o que no fundo, no fundo, pode ser a melhor solução: nada.